OUTROS TEXTOS
Aqui você encontra textos já publicados, em blogs e revistas culturais on line. Alguns são bastante antigos porém merecedores de um carinho especial e por isso não consigo deixar de mostrá-los. Caso você queira copiar alguns deles
fique a vontade. Apenas mencione a autoria e a fonte sempre que torná-los públicos.
Simples assim
Pelo menos em um quesito a Antiguidade ganha disparada da Modernidade: era simples.
Por exemplo: para se comunicar com alguém próximo, na mesma cidade, bastava mandar um recado ou
um bilhete e acabou-se. Em casos de urgência era possível recorrer a alguém da mesma rua que tivesse
um telefone e em poucas horas conseguia-se uma ligação. Precária, mas suficiente para resolver o assunto.
A comunicação com pessoas distantes também era clara: cartas e cartões postais. Assuntos mais prementes exigiam um telegrama e em casos extremos um telegrama via Western Union, rapidíssimos, capazes de chegar até no mesmo dia. Simples.
(Se eu começar a enumerar aqui as escolhas possíveis entre os recursos de comunicação que dispomos hoje este artigo transforma-se num livro).
Sexo. Era simples: homens ou mulheres e pronto. As variações viados e sapatonas (podia ser chamado assim, ainda não era crime) eram raras e tratadas como tal. Com a modernidade esse tema ficou extremamente complexo. Varias novas categorias surgiram em ambos os gêneros e os antigos homens
(ou machos) hoje encontram alguma dificuldade em se identificar com uma delas. Hetero ? Machão? Emo? Homoafetivo? Metrossexual? Bissexual? Assexual ? Homo? Transexual ? Ninguém sabe ao certo, na verdade. Com as mulheres (ou fêmeas) acontece a mesma coisa. Combinar um gênero com o outro se transformou numa espécie de bingo, mega sena, coisa assim.
(Para complicar ainda mais, surgiu o politicamente correto e o Homem não representa mais o topo
da cadeia evolutiva do planeta e sim o Ser Humano. Mais recentemente surgiu a "presidenta" e pesquisas avançam para provar que os animais também são humanos, mas essas são histórias paralelas).
Para os que conseguiam vencer na vida e comprar um carro, também era simples: Fusca. Fora disso
era excentricidade ou então coisa de milionários. Caso o carro apresentasse um defeito, era o carburador. Sempre. Até pegar um taxi era simples: bastava caminhar até o ponto mais próximo.
(Não esperem que eu comece a discorrer aqui sobre as variedades de automóveis hoje existentes e os manuais e livros disponíveis para ajudar a escolher um deles. Muito menos pense que eu me atreverei
a enumerar as diversas formas de conseguir um taxi, ainda que a maioria delas raramente funcione).
Informação? O jornal no fim da tarde trazia um resumo do que aconteceu durante o dia no país e em lugares assustadoramente distantes, como Hollywood, Paris ou Curitiba. Para saber o que estava acontecendo
na própria cidade bastava ligar o rádio e ficar perto dele. Simples: ele não se movia. Para as variedades
e curiosidades haviam revistas mensais. Fácil. Mais que isso carecia de recorrer ao boca-a-boca.
(Quer que eu comente sobre as formas de obter informação hoje? Ou sobre as opções de aplicativos para smartphones? Claro que você não quer nem somos malucos de tentar fazer isso).
Até vestir era mais simples. Roupa do dia a dia e roupa de sair. Costureiras e alfaiates com seus figurinos ajudavam a decidir o que era uma e o que era a outra. As lojas de roupas prontas resolviam problemas graves como uma festa inesperada ou um enterro para ir.
(Saudosista, eu? Engano seu. Adoro a modernidade. Carros japoneses, internet banking, notebooks, celulares, e-commerce, micro-ondas (isso é antigo, não?), whatsapps, câmeras digitais, Google, descartáveis, e-mails, fast food, drones, tudo isso me fascina).
Mas devo confessar: sinto falta da simplicidade.
Ser Humano
Quase sempre nos impressionamos com grandes obras da literatura e outras artes nobres sobre a mediocridade humana. Hoje, constantes e veementes comentários nas redes sociais mostram que pouco mudou em nossa opinião sobre nós mesmos.
São longas ou curtas considerações indignadas a respeito da nossa milenar pré-disposição para guerra, a violência contra os mais fracos, a falta de generosidade ou gratidão, a insensibilidade diante dos mistérios da natureza e da alma e por aí vamos. Tendemos tacitamente a concordar com tudo isso, pois é o que vemos diariamente nas telas dos televisores, computadores e smartphones. Mesmo levando em conta a capacidade cognitiva e criativa do ser humano -que inclusive permitiu a existência dos ditos televisores, computadores e smartphones- admitimos melancólicos sermos uma espécie endiabrada.
Mas será que foi fácil -ou continua sendo- ser humano?
Cedo aprendemos que a morte existe, quando não súbita, precedida pela velhice sempre dolorida. Cachorros, mamutes, borboletas simplesmente ignoram isso até o momento em que ela acontece. Conviver com a certeza da morte já é suficiente para nos fazer diferentes de macacos, tartarugas, pombos.
A incerteza sobre o retorno do Sol após a escuridão da noite nunca foi uma preocupação para águas vivas, cobras, gatos. Já os nossos ancestrais se juntavam e se encolhiam nas cavernas com medo do que poderia acontecer na vasta e talvez interminável noite pré-histórica, o que terminou por criar o sentido de família
ou grupos de apoio, tanto faz. Aranhas, jacarés, águias jamais se preocuparam com isso.
Quando o Sol finalmente reaparecia -e sempre o fez mas isso não impede que ainda hoje alguns de nós durmam inquietos a respeito- se iniciava uma longa jornada em busca do que comer ou mais dramaticamente, de como sobreviver. Essa luta diária incluía o perigo de mortes, acidentes e doenças, enquanto fêmeas e filhotes esperavam ansiosos nas grutas. Lagartos, girafas, dinossauros não tinham
tanta dificuldade assim.
Conscientes de cotidiana presença da possibilidade de morrer, a vida para os humanos ganhou contornos de uma luta contínua por proteção. Proteção contra a fome, as enfermidades, as feras, as tempestades, as noites, as traições. Depois aumentamos em quantidade e foi preciso proteger as casas, as terras, os reinos, as fronteiras, coisas que tigres, corujas, beija-flores raramente precisaram fazer.
Sermos inteligentes nos levou a desenvolver ferramentas -e armas- para organizar essa proteção e garantir a continuidade da vida, pois que essa mesma inteligência nos levou a termos esposas e herdeiros. Descendentes com uma carência prioritária de proteção. Coiotes, polvos, baratas desconhecem essa continuidade inquietante.
Inventamos, descobrimos ou desenvolvemos a saudade, o amor, a responsabilidade, a angústia, a ansiedade, o remorso, o arrependimento, o orgulho, a vaidade, a mentira, a promessa, a dívida, a pressa, a impaciência,
o pânico, o choro calado, o nó na garganta, a solidão. Gaviões, tubarões, lobos passaram longe de tudo isso.
Atravessamos 150 mil anos lutando diuturnamente contra inimigos reais ou imaginários, envolvidos em trevas do cotidiano e do pensamento, cercados de incertezas e medos, tendo como única certeza a própria finitude, a perda final de tudo aquilo pelo que somos obrigados a lutar. Jabotis, pavões, rinocerontes desconhecem essas angústias.
Onças, camelos, minhocas não questionam em momento algum quem os criou ou para que e
desconhecendo a própria morte, muito menos querem saber se haverá vida após ela. Nós passamos
a buscar essa possibilidade como um destino final. Uma recompensa, um repouso merecido após
uma jornada inegavelmente árdua.
Um ou outro humano escapou desse caminho pedregoso e viveu como se soubesse o imenso segredo
dessa sofrida condição humana, transformando toda sua capacidade de conhecer e criar em gentileza, bondade, ajuda. Hipopótamos, corvos, ratos nunca precisaram de santos ou heróis.
Assim desenvolvemos nossas frágeis couraças e seguimos no tempo, sendo exatamente como sempre fomos, apenas com mais conhecimento e recursos para cumprirmos as mesmas e perigosas tarefas de sempre.
Ursos, zebras, canários simplesmente vivem. Mas não é simples nem fácil ser humano. Nunca foi.
Verão de '42
Quando assisti pela primeira vez O Verão de 42 (Summer of ’42) fiquei fascinado pelo personagem Ermie, um adolescente sonhador, romântico, puro, ingênuo e sensível. Para quem não viu o filme, Ermie e mais dois amigos estão passando o verão numa pequena ilha na costa da Flórida e em busca de suas primeiras experiências sexuais. Dos outros dois amigos, um é um garoto bem menor, completamente desajeitado, amedrontado e desconhecedor de qualquer vestígio ou possibilidade de relacionamento sexual. Pouco importante tanto na aventura quanto no roteiro.
O terceiro personagem é o Oscy. Esperto, cheio de malícia e esquemas para tentar a descoberta do mistério que os fascina e amedronta. Anda com uma camisinha no bolso para dar sorte. Ermie apaixona-se por Dorothy, uma linda mulher casada com um soldado, que acaba morrendo em combate e abrindo caminho para que ele realize seu sonho impossível. Na época, achei o Oscy um exemplo de insensibilidade e machismo, interessado apenas em dar um jeito de comer alguém, desprezando completamente sentimentos e atropelando emoções.
O tempo passou e hoje, 30 e muitos anos depois, encontro Summer of ’42 em DVD, abandonado numa locadora que liquida seu estoque. Compro e assisto de novo. E acho o Ermie um grande bobo, enquanto vejo no Oscy o sábio de toda a história. Se a intenção era descobrir o sexo, que isto seja feito e fim de papo.
Objetividade, sem envolvimentos desnecessários e emoções para arrastar pelo resto da vida. Freud aplaudiria de pé. Isto sim é que significa saber o que se quer da vida. Por isso ele rapidamente fatura a linda loirinha Miriam e experimenta o sexo até ficar trôpego, quase desfalecendo em plena areia de Malibu.
É claro que Ermie e Oscy não mudaram nada, visto serem personagens de celulóide gravadas em 35 mm. Portanto, mudei eu. Os mais críticos e sensíveis dirão que eu perdi a emoção, os valores acima do sexo e do descartável, aqueles só revelados pelo amor, pelo sentimento, pela entrega total.
Acho que não os perdi, mas tenho certeza de que os gastei. Milhares de páginas de poemas lidos e escritos, de canções cantadas e choradas, quilômetros e mais quilômetros de terra, céu ou mar atravessados em busca de um par de olhos ou de um sorriso, incontáveis horas olhando o telefone e a caixa de correspondência parecem ter esgotado as minhas possibilidades de ser Ermie. Porque junto com o amor vem o desamor, a tristeza, a dor de ver tudo se acabar, a certeza de que não é preciso tanto sofrimento para se saber capaz de amar. Como diz Chico Buarque, hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito, exijo respeito, não sou mais um sonhador. Antes de amar qualquer pessoa é preciso que amemos a nós mesmo, caso contrário estaremos anulando qualquer possibilidade futura de querer bem.
Há um limite para o querer bem e este limite é que permite aos que o descobrem, seguir querendo. Parece um contra-senso, mas tem lógica. Se alguém abre mão de tudo por amor, estará abrindo mão de si próprio e portanto da própria validade de seus atos e sentimentos. Oscy gostaria muito de ir para a cama com Dorothy, mas sabia que isto só seria possível pelo caminho do sofrimento e preferiu não abrir mão de nada nem da alegria em suas férias, menos ainda se afastar do seu objetivo. Está certo.
Se você pretende passar a sua vida no alto de uma montanha, não tem sentido se apaixonar por uma sereia. O amor não é cego. Talvez nos deixe um pouco burros, mas ele nos mostra claramente a possibilidade ou não de sermos felizes. Daí em diante, é uma questão de auto-estima. Neste inverno de 2014, fico com Oscy.
Na Ponta do Lápis
Existe uma piada antiga que conta um papo entre dois astronautas, um dos Estados Unidos e o outro da antiga União Soviética. O americano diz que a NASA estava investindo milhões de dólares num projeto e desenvolvendo uma caneta que funcionaria perfeitamente no espaço, em ambientes sem gravidade. Aí o russo retruca e diz: “Nós já estamos usando um artefato que faz isso. Chama-se lápis”.
A verdade é que o lápis ostenta o título de mais antigo instrumento de escrita do planeta e ainda em pleno uso. Durante séculos ele foi apenas um pedaço de madeira -mais tarde de metal- pontiagudo com o qual se gravavam símbolos e desenhos, seja sobre a terra, barro, madeira, argila ainda fresca ou simplesmente em paredes e troncos de árvores. Em 1564 a descoberta da grafita, em Borrowdale, na Inglaterra, levou à invenção do lápis como o conhecemos até hoje. O mineral -cujo nome vem do grego graphein e que significa escrever- é flexível e por isso exigia um envoltório qualquer para estabilizá-la. Inicialmente enrolava-se um cordão em torno de um bastão de grafita e lá estava o lápis. Em seguida começaram a ser usados tubos ocos de madeira e o lápis chegou à sua forma definitiva aí por volta do final do século 18.
Embora utilizando um composto de grafita e enxofre, que resultava num lápis de qualidade inferior aos ingleses, a cidade de Nuremberg, na Alemanha, tornou-se um pólo produtor de lápis na Europa, graças a vastíssimas jazidas de grafita descobertas na região. Foi em 1795 que este cenário se transformou radicalmente com uma técnica desenvolvida pelo químico francês Jacques Conté. Ele criou uma mistura de grafita em pó com enxofre, queimada em fornalha e prensada em qualquer formato desejado. Esta é até hoje, mais de dois séculos depois, a base da manufatura do lápis.
Uma das fábricas em atividade em Nuremberg, pertencente a Kasper Faber, foi herdada por seus bisnetos Johann e John, em 1847. Eles então iniciaram um processo de desenvolvimento que a transformaria numa empresa de âmbito mundial. Já em 1856 Johann adquiria os direitos de toda a produção de grafita do leste da Sibéria, enquanto John partir para os Estados Unidos, implantando em 1861 a primeira fábrica importante de lápis da América e matriz das posteriores Eberhard Faber, Faber Castell e outras pelo mundo inteiro, todas controladas pela família Faber.
O tempo trouxe os lápis de diversas consistências da grafita, os coloridos, os de aquarela, aqueles achatados usados por marceneiros, os enormes, os com borracha de apagar numa ponta e por aí. Empresas viram nos lápis um excelente material de divulgação e passaram a imprimir neles suas marcas, oferecendo-os fartamente como brindes. Vieram também outros lápis usando matérias primas diferentes e destinados a adornar olhos e sobrancelhas ou ainda os lábios. Diversos “periféricos” foram criados em função do lápis. Apontadores de mesa, apontador portáteis das mais esquisitas formas, prolongadores de metal para usar o lápis até o último centímetro, borracha para encaixar na extremidade superior, capas protetoras para as pontas e sei lá mais o que.
Hoje, em pleno reinado da escrita e desenho digitais, o lápis segue presente nas salas de reuniões de grandes empresas, nos escritório de arquitetura, nas casas, nas escolas, nas bolsas femininas e em centenas de outras utilizações da escrita ou do traço. Como pode algo tão simples sobreviver a uma época de desenfreado consumo de tecnologia? Simplesmente por serem baratos? Não creio.
Antes de dar minha opinião, é recomendável repetir mais uma vez que não sou historiador, sociólogo, pesquisador ou qualquer tipo de autoridade nos assuntos que abordo. Minhas conclusões são apenas resultados da curiosidade e de um raciocínio simples em busca de um sentido para o que
me cerca, sem qualquer outro valor além desses. Penso que a ligação existente entre o ser humano e os lápis é afetiva.
Depois de cumprir sua jornada como principal ferramenta da escrita humana, ele passou a ser uma espécie de “roupa íntima” dos nossos pensamentos. O instrumento adequado a não eternizar rabiscos geométricos ou formas surreais feitos durante reuniões chatíssimas. O nome ou as iniciais da mulher amada que não nos enxerga, em incontáveis folhas de bloco. O orçamento secreto para aquela viagem à Catmandu que nunca faremos. Intimidades que não comportam o registro oficial das bics ou Mont Blancs da vida e menos ainda dos notes, tablets, ipods e pedes. A materialização momentânea de projetos, ideias ou sonhos que ainda não estão prontos para serem impressos ou compartilhados. A revelação silenciosa e efêmera de nossas manias, códigos e segredos.
Um lápis é um pedaço de natureza que se alia a nós para que possamos escrever ou desenhar sem censura prévia, sem corretor automático. Um lembrete do tempo em que ainda se podia voltar atrás. Assim, acredito que enquanto houver sobre este planeta alguém disposto a rabiscar dois nomes numa parede e envolve-los com um coração, sempre existirão lápis.
Diga "333"
Lembro-me do tempo em que o ambiente familiar tornava-se tenso, quando alguém fazia uma consulta médica e o Doutor solicitava exames de laboratório. Não podia ser coisa boa. Exame de sangue e radiografia então geravam quase pânico entre alguns mais preocupados. Hoje os hemogramas completos, tempo
de protombina, dosagem de HDL, ureia, creatinina e sei lá mais o que, são solicitados praticamente pelas recepcionistas das clínicas e consultórios, antes mesmo que o médico olhe para você. Depois que ele recebe os resultados dos exames laboratoriais, aí entram em cena os exames funcionais. Testes de esforço, tomografias, cintilografias, ressonâncias de todas as espécies.
Ao fim de tudo, é grande a possibilidade do médico dizer que você está estressado, te receitar um anti ansiolítico e recomendar férias. Ou então te encaminhar para outro médico, especialista em alguma outra área. Quando a jornada chegar ao fim, seja lá qual for o médico que tenha chegado a alguma conclusão,
você certamente sairá de lá com a recomendação de comer apenas rabanetes e alface, andar 2 horas por dia
e mudar de calçada quando avistar um luminoso do McDonald’s.
Nunca vi meu pai ou minha mãe preocupados com eliminar gorduras da comida, combinar as cores das verduras ou virar as costas para uma boa fritura. Ela foi-se com 88 anos e até algumas semanas antes da partida mantinha suas tradicionais preferências gastronômicas: quibes, pastéis, empadas e pizzas. Com refrigerante, claro. Mas isso é outra conversa.
A medicina avançou como ciência, evoluiu -e muito- como negócio e regrediu em habilidade individual. Exames laboratoriais e funcionais fazem parte da cadeia produtiva da medicina, da mesma forma que a especialização, pois praticamente não existe mais a Clínica Geral. Se vc sente uma dor em qualquer lugar
do corpo a primeira questão a ser resolvida é que tipo de médico procurar. Nas emergências dos hospitais existe uma triagem, feita por residentes, que encaminham os pacientes para especialistas em alguma coisa. Nenhum médico quer se responsabilizar por um diagnóstico conclusivo. Ouvi de minha própria filha -médica- que a medicina tem compromisso com os métodos e não com os resultados. Ou seja, se o método for considerado correto, pouco importa se o paciente continuar vivo ou não. É difícil aceitar.
Entretanto em meio a todas essas transformações, inegavelmente muitos avanços práticos aconteceram. Novas pesquisas, tecnologias aplicadas, novas drogas e se o atendimento melhorou pouco a sua expectativa de vida aumentou muito, caso você escape do trânsito, dos assaltantes ou da polícia.
Aí eu me pergunto: a vida é uma questão de tempo? Vive melhor quem vive mais? Chegar aos 95 anos, precisando de ajuda até para pentear os cabelos é um progresso? Aos 60 já desço escadas com cuidado, olhando bem os degraus (uma fratura a esta altura demora anos pra ser resolvida) enquanto alguém de
20 anos passa por mim subindo as mesmas escadas correndo, de três em três degraus. Sorrindo. O que além de tudo é, evidentemente, uma afronta.
Vampiros vivem para sempre e a grande maioria deles declara-se completamente insatisfeita com a situação, assistindo seus amigos, inimigos, alimentos ou amores humanos, envelhecerem e desaparecerem sucessivamente enquanto eles permanecem do mesmo jeito, alguns ainda guardando recordações
da construção das pirâmides e da Esfinge. Insuportável, dizem eles.
Talvez tivesse sido melhor a medicina ter-nos garantido viver até os 70 e chega; sem perder parte dos sentidos, sem dores e sem limitações. Estamos ficando vivos por mais tempo, sim, mas não escapamos
das dores de ouvido, das câimbras, das unhas encravadas, das viroses (antigamente eram chamadas de gripe), da dor de cabeça, das fisgadas na coluna e por aí vai. Como disse João Ubaldo Ribeiro: depois dos 40 se você acordar e não sentir dor alguma, é porque desencarnou.
Estamos ficando mais tempo vivos, sim, mas a custa de dietas rigorosas, rígidas regras de comportamento físico-cultural e remédios de uso contínuo. Mesmo assim caminhamos inevitavelmente para a senilidade,
um estágio de vida (?) que na Idade Média, quando se vivia no máximo até os 50, ninguém jamais soube
da existência. Estamos ficando mais tempo vivos, sim, mas será que estamos vivendo mais tempo?